02/11/2008

Poesia marginal

No dia 29 de outubro de 1983, durante uma crise emocional, Ana Cristina Cesar pôs fim à própria vida. Ana C. – como costumava assinar – infelizmente desceu cedo do grande ônibus da vida. Mas, nos presenteou com versos simples e profundos. O suicídio da poetisa, quatro meses após completar 31 anos, deixou uma lacuna no que havia de melhor na poesia da década de 1970. Hoje, vinte e cinco anos depois, é urgente homenagear aquela que foi um dos ícones da Poesia Marginal. Como diria Cacaso, em um poema dedicado à autora: “Ana Cristina cadê você?”.

Ana Cristina Cesar fez parte de uma geração que viveu importantes acontecimentos políticos. Em maio de 1968, estudantes e trabalhadores sacudiram a França com greves e confrontos contra o autoritarismo, influenciando outras partes do mundo. Foi uma época marcada pela contracultura, pelo deboche, pela liberdade sexual, pela força de movimentos feministas, defesa dos direitos civis e dos trabalhadores. 

Os poemas geralmente falavam da vida imediata, utilizando uma linguagem livre, coloquial, cheia de humor e gíria. Inspirados pelo Modernismo, pelos concretistas e pela Tropicália, os poetas marginais gostavam de abordar temas como amor, sexo, drogas, política e vida familiar. Além da bela Ana Cristina Cesar, integram o time desse período figuras como Chacal, Cacaso, Francisco Alvim e Paulo Leminski.

A obra de Ana Cristina Cesar guarda uma sensibilidade tão ímpar quanto a beleza simples de seus versos. Com uma linguagem livre de exageros estéticos, a poesia de Ana C. retrata seu testemunho perplexo diante da vida. Há também em seus poemas o caráter confessional, apresentando o registro da intimidade como se estivéssemos lendo cartas e diários particulares. Isso fica claro nos versos: “Faz três semanas/espero depois da novela/sem falta/um telefonema/de algum ponto perdido do país”.

A maneira fragmentária de revelar esta intimidade faz algumas vezes tudo parecer mera aparência, como se a poesia fosse um jogo de gato e rato. De todo modo, Ana Cristina traz à tona pequenas revelações de quem sempre aparentou estar esperando por alguém. A verdade é que sua obra reserva uma fina linha entre o ficcional e o autobiográfico. E é exatamente por isso que ela permanece. 


Veja abaixo alguns poemas de Ana C.

"olho muito tempo o corpo de um poema"
olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas 

Um Beijo 
que tivesse um blue. 
Isto é 
imitasse feliz a delicadeza, a sua, 
assim como um tropeço 
que mergulha surdamente 
no reino expresso 
do prazer. 
Espio sem um ai 
as evoluções do teu confronto 
à minha sombra 
desde a escolha 
debruçada no menu; 
um peixe grelhado 
um namorado 
uma água 
sem gás 
de decolagem: 
leitor embevecido 
talvez ensurdecido 
"ao sucesso" 
diria meu censor 
"à escuta" 
diria meu amor

A Ponto de Partir 
A ponto de 
partir, já sei 
que nossos olhos 
sorriam para sempre 
na distância. 
Parece pouco? 
Chão de sal grosso, e ouro que se racha. 
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância. 
Lentes escuríssimas sob os pilotis. 

O Homem Público N. 1 (Antologia) 
Tarde aprendi 
bom mesmo 
é dar a alma como lavada. 
Não há razão 
para conservar 
este fiapo de noite velha. 
Que significa isso? 
Há uma fita 
que vai sendo cortada 
deixando uma sombra 
no papel. 
Discursos detonam. 
Não sou eu que estou ali 
de roupa escura 
sorrindo ou fingindo 
ouvir. 
No entanto 
também escrevi coisas assim, 
para pessoas que nem sei mais 
quem são, 
de uma doçura 
venenosa 
de tão funda. 
Sem título
é muito claro 
amor 
bateu 
para ficar 
nesta varanda descoberta 
a anoitecer sobre a cidade 
em construção 
sobre a pequena constrição 
no teu peito 
angústia de felicidade 
luzes de automóveis 
riscando o tempo 
canteiros de obras 
em repouso 
recuo súbito da trama.
Sem título
Quando entre nós só havia 
uma carta certa 
a correspondência 
completa 
o trem os trilhos 
a janela aberta 
uma certa paisagem 
sem pedras ou 
sobressaltos 
meu salto alto 
em equilíbrio 
o copo d’água 
a espera do café.

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